sábado, fevereiro 23, 2008

Mobilidade



Ajeitou vários objetos pessoais no móvel novo. Depois de trocar o anterior, de madeira corroída e pertences bagunçados, sentia-se muito melhor. Foi um ânimo novo. Como mudar o cabelo e se olhar no espelho satisfeita com o balançar das mechas revitalizadas.O velho deprime.

Bastou mudar uma peça para outras fazerem sentido. O que estava capenga se consertou, o que estava caído se aprumou, o que estava em caos não-criativo, reavivou para novas possibilidades. Muito lixo foi embora, só o que tinha utilidade ficou.

Automaticamente, tudo se tornou mais bonito, mais interessante, mais harmônico, mais completo, mais agradável aos olhos e ao toque. A mudança fazia sentido e estava claro, pelo estado do móvel antigo, que há muito era iminente.

Viu o móvel fazer paralelo aos dias que vivera. Velhos, ultrapassados, insuficientes, destruídos pelo excesso de uso e exposição . O vento gelado e inédito resfriava os ânimos exaltados pelo tempo que durou demais.

Mesmo o móvel velho tivera sua utilidade e importância. Compora um cenário, desempenhara o seu papel.

Engraçado é que na mudança que abriu portas para tudo ficar perfeito - dentro da imperfeição que coloca o sabor nas línguas e o ferver nas veias - as possibilidades destrancadas às vezes podem travar a marcha da ação.

Mas sabia que, se acontecesse, seria temporário. Viera longe demais dos seus conceitos acovardados e enfraquecidos do início para se deixar imobilizar por uma insegurança que já pudera, em sua frágil evolução tortuosa, dominar.

Voltou a sentir a madeira. Como era bonito o móvel novo. Não porque fosse impecável, ou porque fosse melhor do que o anterior. Era bonito porque estava no seu tempo. Viera na hora certa para que tudo se arrumasse. Transformava o ambiente, mas jamais substituiria a madeira falha e incerta que lhe servira por todo o tempo que durou. Eram diferentes, com propósitos diferentes. Sentia pena em ver o móvel velho ser descartado, e no entanto, não lhe era difícil fazê-lo. Com satisfação, re-organizara tudo para que os objetos fossem dispostos e utilizados de maneira diferente da que adotara até então.

Deixava para trás algo que sempre a acompanharia. Algo com que aprender de novo e de novo, todas as vezes que a lembrança chegasse. Algo que nunca existiria no esquecimento , e que jamais seria revivido. Passara. Este era o novo estado daquela realidade que tão intensamente lhe acompanhara.

Saboreava, sem qualquer expectativa, a sensação transformadora de permitir renovações, de abraçar transformações, fossem estas quais fossem. Fazia planos para a sua entrega quase cega a um caminho que não precisava prever. Era possível planejar sem esperar.

Seus planos desenhavam-se num contorno virgem. Não sabia. Não antecipava. Concentrava-se, apenas, da forma liberta com a qual se doava para um momento sem respostas. Pressentia uma ascensão sem obviedades.

Agora era como se aquela mudança, imprescindível e sutil, colocasse em movimento a vida estagnada.

O móvel novo deslocara-se a ocupar o seu espaço, definitivamente.


___

terça-feira, fevereiro 05, 2008

Quest


Eu sou alguém que tem sonhos. Venho me descobrindo ainda mais idealista e romântica do que eu já me imaginava ser. A vida não é brincadeira, meu amigo. E disso, quase todo mundo sabe. Enquanto isso, a vida é sim, uma imensa brincadeira cósmica.
Eu tenho esta mania de acreditar nos meus valores. Percebi cedo que isto tem um preço alto, como tudo o que vale a pena assumir. Quero discutir com a Bíblia, com o dicionário, com os manuais, com as regulamentações, com as pessoas pasteurizadas, com os dogmas, com a constituição, com o código penal, com as autoridades, com os meus próprios pensamentos. Acho que o mundo não gosta muito disso não. Fazer o quê? Minhas rugas de preocupação até aparecem, mas eu sei que só não posso discutir com aquilo que sou. Posso melhorar, ou tentar. Posso prestar atenção para aprender mais rápido e evitar cacas desnecessárias. Posso me valer do que já sorri, do que já chorei, do que já assimilei e do que já incompreendi para não cometer os mesmos erros. Prefiro sempre os erros novos, mas os velhos gostam da gente, né?
Descobri quem é Deus. E Ele é um cara com um tremendo senso de humor, nós é que não entendemos as piadas. Meu Deus veio a se mostrar através desta vozinha quase insuportável que mora aqui dentro e me questiona por tudo. Deus é a dúvida que me faz continuar, que me faz mudar, que me faz voltar atrás, que me leva a buscar e a querer insaciavelmente, me encontrar comigo. Deus é este ponto de interrogação que não me larga nunca.
Tenho me cansado rápido das minhas próprias palavras. De repente, percebo que a última declaração já ficou obsoleta e precisa ser revista. Como se, a partir disto eu fosse resolver alguma pendência muito grande. Como se, assim, alguma descoberta fosse se apresentar à minha frente. Mesmo que isto não aconteça, eu produzo uma nova declaração para acalmar meus ânimos. Pode ser que, lá na frente, algumas descobertas venham a encontrar-se comigo, frutos de minhas incansáveis revisões a meu respeito.
Eu acho que a vida tem que se desenrolar de acordo com o que é justo. Eu acho que o amor sempre traz o que é nosso de volta e, no fundo, não nos deixaria amar em vão. Eu acho que a mágica esta´a solta e, quando menos se espera, ela nos encontra no dobrar de uma esquina. Eu acho que a pessoa grande que mora em nós, no final acaba sempre se sobrepondo à pessoa pequena que mora em nós. Eu acho que quem espera - e age - alcança sim, sempre. Eu acho que a minha vida daria um filme. Tá pra nascer algo mais romântico e idealista do que acreditar em tudo isso.
Não sei como deve ser me ver de fora para dentro. Imagino que pelo menos metade das coisas que outras pessoas pensem a meu respeito estejam completamente fora daquilo que eu diria de mim mesma. E a gente se importa sim, com o que os outros pensam. Quase sempre. Só não dá para tomar decisões por causa disso, porque cada um vai pensar o que quiser, de qualquer maneira. Por isso eu não acredito em dar explicações. Quem entende, já entendeu desde sempre. E quem não entendeu, de verdade, não entenderá nem com mil argumentos. As almas são partículas de uma mesma Unidade, mas são bem distintas entre si. São nações independentes com suas próprias leis e idiomas. E aí, aquele Deus ali de cima, nos juntou para a gente aprender um monte de linguagens diferentes. E a gente esperneia, esbraveja, cala, consente, corre, fica, abraça, esmurra e, lá pelo fim do terceiro assalto começa a perceber que a única pessoa com a qual temos contas a acertar, é a gente mesmo.
***