quinta-feira, novembro 29, 2007

Para deixar viver




Hoje eu fui a uma escola estadual.
Coisa banal, nada demais ao primeiro olhar.
Simples, localizada num bairro bastante humilde e mais humilde ainda em atenção. De todos.
Da prefeitura, dos conterrâneos, de si mesmos. Uma escola como outra qualquer, cheia de crianças como outras quaisquer aprendendo o ensino básico. São apenas um pouco diferentes do que eu fui. Tão crianças quanto, tão lindas quanto toda criança é, tão cheias de personalidade e vontade por sorver o mundo quanto toda criança quer ser. Cheias de olhos e espanto. Cheias de exclamações e entusiasmo. Com algumas histórias a mais para contar.
O motivo da minha ida foi fazer a cobertura fotográfica do uso, em sala de aula, de uma cartilha anti-drogas - projeto da polícia federal - que a empresa para a qual trabalho ajudou a patrocinar. Terceira e quarta séries, o equivalente em faixa etária nesta escola à segunda e quinta séries, respectivamente. Crianças de 8 a 11 anos.
De início, na entrega das cartilhas, houve alguma resistência por parte de coordenação e diretoria, já que, aparentemente a introdução das cartilhas no plano de ensino atrapalharia o planejamento inicial. Entendi que isto mudou com o passar dos poucos meses, visto que foram vários os trabalhos desenvolvidos em sala e maiores ainda as manifestações das crianças sobre o tema, durante as aulas.
A proposta da cartilha é de, através de histórias e desenhos para colorir, orientar as crianças para que não se deixem enveredar pelo caminho das drogas. A sugestão era de que, através da espontaneidade e criatividade, o tema fosse abordado de forma livre. A partir disso, surgiram desenhos, letra de rap - que apresentaram para mim, orgulhosos - , discussões e muitos, muitos relatos.
Nada na cartilha era novidade para as crianças. Teve aluno ensinando aos colegas como enrolar o cigarro de maconha ou fazendo demonstração prática com o giz moído, como se fosse o próprio pó. Nada que o pai, mãe, tio, irmão, primo, vizinho já não tivesse dado exemplos claros de como fazer.
No pouco tempo de conversa com as professoras, me resumiram brevemente depoimentos variados. O pai e a mãe que usavam cocaína em casa, junto ao filho que, questionado sobre o que dizia, perguntou à professora o que poderia fazer sendo apenas uma criança. O comentário de que o pai era um "traficante pesado" nas palavras do próprio aluno, e a mãe uma usuária. A menina que descreveu como era difícil para a mãe "aguentar transar com o pai" quando consumia droga e voltava para casa totalmente alterado. A avó e mãe do aluno detidas - retiradas pelo camburão de dentro de casa - por tráfico. O pai que sumia por três dias quando "enchia a cara" e precisava ser trazido de algum lugar do meio da rua, arrastado. Desde o menino que precisou ser afastado, aos 12 anos, por agredir os colegas em suas crises de abstinência em classe até o menino que pede todos os dias à professora para levar para casa um pedaço de papel higiênico, pois "gostava de ir ao banheiro de manhã" mas não tinha papel em casa. Os pais trabalham mas aparentemente, tem alguns vícios para sustentar, estando impossibilitados de abastecer a casa devidamente. Sem falar nos comentários mais genéricos das crianças que expressam suas dores através de sinais velados nos desenhos que fazem, da disciplina - no melhor sentido de educação - que abertamente só encontram na escola, entre outras histórias de vida.
Quase todas as crianças, durante o tempo em que estive lá, encontraram em meio a esta realidade, tempo e disposição para sorrir animadamente pedindo flashes e mais flashes. Lindos e inesquecíveis. Ainda telas em branco. Com manchas e dores adultas, mas ainda, em branco.
Há um consenso entre elas de que o uso das drogas não é legal. Ainda há. Por incrível que me pareça, há.
Saí dali com o coração mais cheio, me perguntando quanto tempo mais até que deixem de resistir a este caminho torto. Quanto tempo mais para que ainda tenham uma chance justa à vida com oportunidade para a qual eles nasceram. Quão fortes deverão ser para que a sua oportunidade não seja tirada por ninguém, mesmo que este alguém lhes tenha dado a vida.



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segunda-feira, novembro 26, 2007

Íntima



ela menstrua
sangra fluidos que o corpo não quis
sangra semente não plantada
chora vermelho por entre as pernas


discretamente
sangra a vida que ninguém vê


É mesmo um mundo de homens - nos cartazes
Se menstruassem o sangue seria carnaval
E todo carnaval, santificado


mas é só ela
que sangra miúda em dores e humores
satisfeita
por não ser descoberta
a menstruar.


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sábado, novembro 24, 2007

Para antes de morrer

Em "Antes que você morra", entre muitas outras viagens, Osho nos leva nesta:

A primeira vez em que se ouviu falar do Mestre Shibli foi quando Mansur Al Hillaj estava sendo assassinado. Shibli era companheiro e amigo de Al Hillaj. Muita gente foi assassinada em tempos passados pelos pretensos religiosos. Jesus foi morto...mas nunca houve um assassinato como o de Al Hillaj; esse foi o mais terrível de todos. Jesus foi simplesmente crucificado, mas Al Hillaj não foi simplesmente crucificado. Ele foi crucificado, mas primeiro lhe cortaram as pernas - e ele estava vivo - e depois as mãos; foi verdadeiramente torturado. Em seguida, sua língua também foi decepada e seus olhos arrancados - e ele ainda estava vivo. E depois cortaram o seu pescoço e o fizeram em pedaços. A primeira vez que se ouviu falar de Shibli foi nesse momento. Cem mil pessoas estavam reunidas para jogar pedras e ridicularizar Mansur. E que crime teria ele cometido? Que pecado havia cometido? Ele não havia cometido qualquer pecado, qualquer crime. Seu único crime foi o de ter dito "Anal Hak", que significa "Eu sou a verdade, eu sou Deus". Se ele estivesse na Índia, o povo o teria adorado durante séculos. Todos os videntes dos Upanixades declaram isto: "Aham Brahmasmi" - "Eu sou Brahma, o Eu Supremo". Anal Hak não é outra coisa senão uma tradução de Aham Brahmasmi. Mas os muçulmanos não podiam tolerar tal coisa.
(...) Mansur é um dos maiores Sufis. Nenhum outro homem na tradição Sufi é comparável e ele. E ele foi assassinado. O povo estava atirando pedras nele, e Shibli estava no meio da multidão. Mansur estava rindo e achando graça. Quando deceparam seus pés, ele apanhou o sangue nas mãos e as lavou com ele, assim como os muçulmanos fazem com a água - wazu. E alguém da multidão perguntou: "O que você está fazendo, Mansur?".
Mansur respondeu: "Como é que se pode fazer wazu com água? Como se pode lavar-se com água? - porque o crime você cometeu com seu sangue, o pecado você comente com sangue, então como se pode purificar com água? Só o sangue pode ser a purificação. Estou purificando minhas mãos, estou me aprontando para a oração."
Alguém riu e disse: "Você é um tolo! Está se aprontando para a oração? Ou está se aprontando para ser assassinado? "
Mansur riu e respondeu: "A verdadeira oração é isto - morrer. Vocês estão me ajudando na minha oração final, a última. E este corpo não pode fazer nada melhor, não pode ser usado de forma melhor - vocês estão me sacrificando no altar do Divino. Esta será minha última oração no mundo."
Quando começaram a decepar suas mãos, ele disse: "Esperem um instante! Deixem-me orar, porque quando eu não tiver mais as mãos, será mais difícil." Então olhou para o céu, orou a Deus e disse: "Perdoe estas pessoas, porque não sabem o que fazem". E falou a Deus: "Você não pode me enganar, seu grande enganador! Eu posso vê-lo em cada pessoa presente aqui. Está tentando me enganar? Você veio como o assassino? Como o inimigo? Mas eu lhe digo, você não pode me enganar, eu o reconhecerei sob qualquer forma que apareça - porque o reconheci dentro de mim mesmo. Agora não ha´possibilidade de engano."
As pessoas atiravam pedras e lama, e Shibli estava ali. Mansur estava rindo e sorrindo, e de súbito começou a gritar e chorar, porque Shibli havia jogado uma rosa em Mansur. Pedras - ele ria. Uma rosa - começou a chorar e a gritar. Alguém perguntou: "O que aconteceu? Com pedras você ri - ficou louco? Shibli atirou apenas uma rosa. Por que você está chorando e gritando tanto?"
Mansur respondeu: "As pessoas que estão atirando pedras não sabem o que fazem, mas este Shibli tem que saber. Para ele será difícil obter o perdão de Deus."
Shibli era um grande sábio erudito, conhecia todas as escrituras. Era um homem de conhecimento. E Mansur disse: "Os outros serão perdoados, porque estão agindo na ignorância, não podem evitar. Não importa o que façam, esta´bem. Na sua cegueira, é tudo que podem fazer, não se pode esperar mais do que isso. Mas Shibli - um homem que sabe! Um homem de conhecimento... será difícil para ele obter perdão. Eis porque eu choro e grito por ele. Ele é o único aqui que está cometendo pecado. Ele sabe! É por isso".
Isto é algo a ser compreendido. Você não pode cometer pecado quando você é ignorante. Como pode cometer um pecado, quando é ignorante? A responsabilidade não está em você; mas quando você sabe, então a responsabilidade está presente. O conhecimento é a maior responsabilidade, o conhecimento o faz responsável. E esta afirmação de Mansur transformou Shibli completamente. Ele se tornou um homem totalmente diferente. Jogou fora o Alcorão, as escrituras e disse: "Elas não me puderam fazer entender nem isto: que todo conhecimento é inútil. Agora vou procurar o verdadeiro conhecimento". E mais tarde, quando lhe pediram que comentasse a afirmação de Mansur, perguntaram: "Qual era o problema? Por que você jogou a flor?" E Shibli respondeu: "Eu estava na multidão e fiquei com medo dela - se não jogasse algo as pessoas poderiam pensar que eu pertencia ao grupo de Mansur. Podiam pensar que também sou companheiro e amigo, podiam se tornar violentas comigo. Eu não podia jogar pedras porque sabia que Mansur era inocente, mas também não tive coragem suficiente para não jogar nada. Eis porque atirei a flor - apenas um comprometimento. E Mansur estava certo ao chorar: chorou pelo meu medo, pela minha covardia. Chorou porque todo o meu conhecimento e tudo o que acumulei a vida toda fora inútil - eu estava comprometido com a multidão".
Todos os eruditos são cúmplices da multidão, são comprometidos com a multidão, por isso é que você jamais ouviu falar de um erudito crucificado por ela. Eles são seguidores da multidão, sempre se comprometem, E a sua cumplicidade é esta: curvam-se quando comparecem diante de Buda ou de Mansur e também se curvam diante da multidão. São gente astuta, muito astuta.
Mas Shibli mudou completamente, ele compreendeu. O sentimento de Mansur por ele e os soluços de Mansur se tornaram uma transformação.
E mais tarde Shibli se tornou um Mestre por seu próprio direito. Levou pelo menos doze anos para isso, perambulando como um vagabundo, um pedinte. E as pessoas perguntavam: "Por que você anda por aí? De que se arrepende?" - porque continuamente ele batia no peito, chorava e soluçava. Quando entrava na mesquita, chorava tanto que todos da aldeia se reuniam. Era tão comovente, uma angústia tão grande, que o povo perguntava: "O que você está fazendo? Que pecado cometeu?".
E ele dizia: "Matei Mansur. Ninguém ali era responsável, mas eu poderia ter compreendido. E joguei uma flor nele, comprometi-me com a multidão, fui covarde. Eu poderia tê-lo salvo, mas perdi o momento. Eis por que me arrependo."
Ele se arrependeu a vida inteira. O arrependimento pode ser tornar um fenômeno muito profundo, se você compreende a responsabilidade. Então, mesmo uma coisa pequena, caso se torne um arrependimento...não apenas verbal, não apenas na superfície; se atinge fundo suas raízes, se você se arrepende desde as suas raízes, se todo o seu ser se sacode, treme, chora e as lágrimas brotam; não apenas de seus olhos, mas de cada célula de seu corpo, então o arrependimento se torna uma transfiguração. Este é o significado do que Jesus repetidas vezes diz: "Arrependam-se!".
O mestre de Jesus, João Batista, não tem muito mais a dizer. Toda a sua mensagem se resume em: "Arrependam-se!" - porque o Reino de Deus está próximo. Ele já vai chegar - arrependam-se antes disso!". O arrependimento - não só mental, mas total - limpa e purifica. Nada pode purificá-lo tanto, ele é uma fogueira, queima todo lixo que existe em você.
Os soluços de Mansur perseguiram Shibli continuamente durante toda a sua vida. Acordando ou dormindo, as lágrimas de Mansur o perseguiam. E isso se tornou uma transformação. Isso é o que um Mestre, somente um grande Mestre, pode fazer - e Mansur o fez. Mesmo quando estava morrendo, transformou um homem como Shibli. Mesmo morrendo, usou sua morte para transformar este homem. Um mestre continua, vivendo ou morrendo, ou mesmo depois de morto, continua usando todas as oportunidades para transformar as pessoas.

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Agora vejo em parte, mas então veremos face a face - O indiano Osho, tornou-se professor de filosofia e trilhou o caminho da descoberta da eternidade - fora das "memórias do passado e da antecipação do futuro" desde muito cedo. Aprendeu e desenvolveu técnicas de meditação e saiu pelo mundo em busca de difundir e aprimorar conhecimentos, e encontrar pessoas. Tido como louco em seu tempo e como lenda após o final de sua vida, Osho não acreditava na mortalidade. "Nunca nasceu, nunca morreu. Apenas visitou este planeta Terra", dizia sua cripta.

Como a Bíblia e outros livros-guias de grandes Mestres, os escritos de Osho são (para mim) metáforas de interpretações inúmeras. Jamais acreditei na leitura literal que muito se insiste em fazer deles e no conceito de culpa e arrependimento que a igreja católica, entre outras, se empenha tanto em divulgar. Da forma como foi contado aqui, me soa muito mais como uma tomada de consciência verdadeira, um caminho para a descoberta de algo maior dentro de nós mesmos.
Tudo o que vale a pena ler está nas entrelinhas.

Namastê.


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quinta-feira, novembro 22, 2007

Wondering


Em anos e anos vividos consegui acumular talvez, um grão de sabedoria.

Me tornei a versão mais amadurecida da mesma alma. Descobri alegrias, esqueci dissabores, semeei interrogações, exclamações e reticências.

Assisti entrarem e saírem companheiros de cena. Improvisei meu balé e sorri aos aplausos que me surpreenderam.

Abri-me. Ansiei por viver com mais voracidade. Ansiei por viver com mais serenidade.

Vi brotar pequenas sementes já esquecidas e vi sair a terra firme debaixo dos meus pés.

Me assustei e me senti pequena e com medo. Me agigantei além do que poderia me supor capaz.

Cantei a plenos pulmões nas melhores e piores épocas e tenho a certeza que, de tanto cantar atraí algumas coisas para a minha vida. Afastei coisas da minha vida também. Nem sempre más.

Seria saudosismo ficar olhando para trás , constatando o que já foi feito? Minha alma sabe ter 90 anos quando quer.

Meu ser vem aprendendo a se desligar um pouco de mim. Minha cabeça aponta direções que ele nem sempre quer seguir e firma pé na sua própria verdade.

Senti o mundo mais próximo e mais distante. Senti que meu coração bate, a cada dia mais, apenas para descobrir como viver no seu mundo, este que vai sendo descoberto. Meu coração quer descobrir mundos novos.

Senti falta de sonhar mais. Foco, é bom homeopaticamente. Em excesso, estraga a aura e é tão preciso brincar de ser gente grande, mas sem se deixar ficar muito no papel de adulto. É um lugar para se visitar, não para habitar.

Me ocorreu que pagar insultos na mesma moeda é um caminho rápido para nos deixar igual ao agressor: feio e pequeno. Me ocorreu também que, depois de escolher não pagar na mesma moeda, posso tranquilamente não desejar qualquer pessoa que seja na minha vida. Isto não seria ruim. Ruim, seria acumular, além dos meus próprios vícios de comportamento, impurezas que não são minhas para cuidar.

Sonhei muito e muitas vezes. Espero por muitas mais. Sempre quis beber e me embriagar da fonte que alimenta os sonhos: comportamentos, pensamentos, sentimentos que ajudassem a sonhar.

Me perdi do caminho dos sonhos e o reencontrei. Fui e voltei nesta verdade tantas vezes que nem sei.

Observei pessoas ao meu redor. Pessoa no espelho. Constatei que não importa o quanto tudo sempre mude, algumas coisas não mudam jamais. Temperamentos não mudam. Índoles não mudam. Eu poderia tentar me acertar um pouquinho então, com a personalidade, e tentar me acertar um pouquinho com a personalidade das outras pessoas também.

Vi amores mais duros e amores mais suaves. E vi que não conseguiria saber qual a melhor forma de amar. Só encontraria as formas de amar que cada um conhece e pode, inclassificáveis.

Amarguei a falta que sempre senti de coisas que não sei o nome. Adocei a falta.

Celebrei a presença do que está e esteve diantes dos meus olhos e dentro do meu espírito.

Minha alma às vezes gosta de ter 90 anos. Já olhou muito para trás e para adiante.

Mas já olhou muito também, para os lados e para dentro de si mesma. Já fechou muito os olhos e apenas se deixou ser.

Meu grão de sabedoria já me serviu. E também já serviu só para eu não querer ser sábia, e apostar.
Escrevo textos na primeira pessoa para que eu soe um pouco mais viável para mim mesma ao dizer estas coisas. Sou uma saudosista que está apenas começando.


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segunda-feira, novembro 19, 2007

Puro Sangue


Ser humano é antes de tudo, ser animal. Racional, sim. Capacitado de discernimento, sim, embora por vezes nada lógico. Mas, um animal.
E disso não se deve esquecer jamais.
Feito de instinto, percepção e vontades inexplicáveis. Capaz de contradizer e contrariar suas próprias crenças a todo momento. Capaz de perder interesse no que já lhe foi essencial. Capaz de atrair-se pelo que já lhe repeliu. Capaz e imprevisível, sobretudo para si mesmo.
Nuance de cores puras. Tons vivos e pastéis da própria aquarela.
Usa a razão para se provar que acredita em valores pré-determinados e rompe com tudo quando surgem novas paisagens.
Bicho do mato. Fera na gaiola. Pássaro solto. Homem.
A evolução natural de uma espécie que escolhe seus parceiros pelo cheiro. O retrocesso elementar de uma raça que não mata para comer.
Este ser, humano e imperfeito que educa a cria à sua própria imagem e semelhança , justificando que é este o seu Deus.
Vive em terras de ninguém e faz as suas leis se chamando de civilizado. Se cerca de espelhos para não enxergar o selvagem que lhe habita.
Se cobre de grifes, perfumes, personas, circunstâncias, mas nunca consegue se explicar. É o sol, quando beija de leve a face da lua. É a lua, quando se entrega à noite em silêncio.
Assiste impassível ao choque de seu campo magnético com o campo magnético de seus semelhantes. Nunca igual, sempre buscando alguma identificação.
É o vento que sopra de repente e desarruma laços feitos para durar. Mostra garras e dentes quando ameaçado e defende o diálogo, na teoria.
É talvez o único animal que não se reconhece animal.
Nega-se. Omite sua natureza. Venda-se.
Quando só, ruge lamentos de uma alma que pouco enxerga. Quando em pares, dança sinuoso criando ritos de conquista. Quando em bandos, imita inconsciente outros animais.
Erra sempre, mas jamais enumera seus erros.
Considera apenas as vitórias. Profano, ateu, inveterado pecador. Goza de todos os seus prazeres e lambe feridas que ele mesmo causou. Fere. Cura. Quer.
Disfarçado, inexplorado, adormecido, mas sim, um selvagem.
E disso não se deve esquecer jamais.
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terça-feira, novembro 13, 2007

Espelhos

Foto: Vanderlei Martinelli

Perguntam sem a menor cerimônia "quem sou eu", como se não fosse falta de respeito colocar uma pessoa contra a parede assim.

Como se esta fosse uma pergunta para a qual existisse resposta.

E lá vou eu. Vou fazendo perguntas para as quais não conheço a resposta. Acho que isso é bom, às vezes. Sinto que isso me enlouquece, quase sempre.

Não saberia o que fazer com as respostas anyway. Tento hoje viver as perguntas, uma de cada vez, quando dá.
A cada vez que caio, penso que esta será a oportunidade perfeita de, desestruturada, encontrar meu eixo. Me engano. Meu eixo muda de lugar constantemente :)
Vejo realização e beleza em detalhes. As coisas tidas como pequenas me interessam, vejo que está nelas a pista mais próxima para se encontrar grandes verdades. Pena que me disvirtuo também, destas belas pistas. Vai ver nem é pena. Lamentar pra quê, se toda porta fechada vira uma janela aberta?

Sei que não enxergo o mundo como ele é, enxergo o mundo como eu sou. E dá-lhe reflexões e encucações. Aí, chega a hora em que desencano de tudo. Aprendi a leveza também. Aprendi que a leveza é onde me sinto bem, que carregar pesos milenares não combina com a pessoa que eu quero ser.

Escorrego nas minhas próprias determinações. Tenho na ponta da língua a teoria de como algo deve ser, mas a prática me sacaneia todas as vezes.

Me enxergo maior do que sou. Me enxergo menor do que sou. Não tenho a noção do meu tamanho real.

Fico para morrer de indignação e sofrimento quando alguém me decepciona e me fere. Aí lembro que ninguém veio ao mundo para atender às minhas expectativas de como agir, e isso me consola por um tempo.

Tenho um sol na terra e uma lua no ar , privilegiadamente, que me mostram como a vida pode ser diferente do que se imagina, inclusive pra mim.

Acho que a generosidade é a melhor de todas as qualidades. Acho que a omissão é o pior de todos os defeitos.

Gostaria que todo amor durasse para sempre. Mesmo transformado, mesmo longe, mesmo arranhado. É curioso oferecer amor. Um dia, daqui a muito ou pouco tempo, pode ser que os amados não estejam por perto. Nem longe, nem em lugar algum. E o amor fica lá. Vivo, mas condensado a uma embalagenzinha que o deixa com braços e pernas de fora. É teimoso, mas só cresce onde recebe espaço. O amor gosta de se esticar e tomar conta de tudo, mas não tente desmerecê-lo porque ele também sabe ignorar.

Eu perco tempo. Ah, como eu perco o meu valioso tempo. Jogo fora minutos, horas, dias para gastar energia com assuntos que não justificam a minha atenção. Demoro para me desenrolar de amarras pequenas. Enfrento melhor as amarras grandes. Mas gosto mesmo quando corro solta, feliz, tranquila, entusiasmada e acesa pela vida.

Gosto de mim mais do que deveria e menos do que poderia.Gosto demais das pessoas mas não me sujeito a elas.

Não gosto que caçoem de mim. Adoro que brinquem comigo.

Acredito que o compromisso maior da vida de cada um seja com o seu íntimo. É para ele que prestamos contas todos os dias. Em nome disso, é essencial viver para estar de bem consigo mesmo e tentar sempre, na medida do possível, estar de bem com quem a gente quer bem.

As pessoas não ficam para sempre por perto, por isso a grande sabedoria é usar intensamente o tempo que tivermos com elas. Tudo passa. Quase todos passam. Mas aquilo que fica e aqueles que ficam, valem cada minuto da nossa dedicação.

Relacionamentos não podem ser algemas. Quando impedem - ou quando nós os usamos como impedimento - de alçar novos vôos, nossa alma se enruga pequena e exige mais. A vida responde, sempre.

Me renovo sempre que consigo. Gosto demais do novo que se abre, mesmo que ele me meta um medo danado. Gosto do que me é familiar também. Gosto de gostar, mas tenho grandes impulsos de desgostar.

Não sou fácil, mas a minha mãe diz que o fácil já está feito.



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sábado, novembro 10, 2007

12 de novembro de 1973

Você nasce todo dia.
Renasce inteiro, de olhos despertos, atentos para o sentimento do mundo.
Tem gente que veio ao mundo a passeio. Tem gente que veio para batalha. Tem gente que veio para impor, dificultar, separar, deprimir, enfeiar. Tem gente que veio para ser peça de decoração, adorno que não tem participação. Tem gente que não se sabe gente, não assume sua grandeza e suas mesquinharias.
Você veio para ser. Para encontrar, perder, sorrir, chorar, procurar, descobrir, acrescentar, acalmar, esquentar, aproximar, encantar, duvidar, começar, desenvolver, evocar, superar, emanar, cultivar, adoçar.
Nascer é mudar de estado. Nascer é encontrar a saída. Nascer é atravessar o caminho. Nascer é fazer parte. Nascer é encarnar o individual e o coletivo.
O mundo se apresenta como quer e pode. E o mundo pode tudo. Você o recebe como sente e quer. E você quer tudo.
Dançam, o mundo e você. E você conta do seu mundo. Canta o mundo nos seus versos e reversos e nas rimas encontra as casas onde deseja morar.
Ama demais e sempre.
Deixa-se abraçar pela mágica e pelo místico de cada coisa prática.
Oferece colo quando a vida exige tanto que não se pode suportar. Oferece riso, beijo, cor, sabor, alma, chão.
Mostra o arco-íris e seus potes de ouro. Mostra que ouro bom é aquele que brota das flores, dos toques, dos sorrisos brilhantes que os olhares têm para oferecer.
Diz verdades das quais sempre duvida e as lança no universo para que retornem, se quiserem. Dói como a carne exposta que encontrou o espinho impiedoso. Seca feridas permitindo que não deixem de existir porque sabe que são dos melhores registros da sua história. E registra alegrias. Pequenas, imensas, indizíveis, totais.
Sorri menino e chora criança. Sonha como sempre se pode sonhar. Anseia por saudades de épocas idas e inéditas.
A vida virgem lhe seduz e a história construída lhe sustenta.
Concebido em terra de feitiços, alça vôos que desafiam territórios na alquimia de sua esperança.
É e se faz.
Presente para quem lhe enxerga. Fé e luz para quem lhe pode conhecer.
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quinta-feira, novembro 08, 2007

Se dê motivo


Expressar é a essência maior e primeira de ser humano.
Para cada pessoa isto pode vir de forma diferente, é certo. Ou nem vir. Mas ela ainda estará lá. A necessidade absoluta de expor o íntimo de alguma forma.
Veja que para expor, não é preciso escancarar. Expor pode conter imensa sutileza e abstração. Escancarar, não – que escancarar, em certos casos, é apenas deselegância em forma de expressão. A carência também faz escancarar, mas toda carência será perdoada, visto que é expressão frustrada, preterida.
Uma auto-análise franca pode mostrar que tudo o que é dito ou feito, vem vestido unicamente numa tentativa de colocar para fora um aspecto, uma nuance, um momento que insistia para ser descoberto. E, ao descobrir, dá-se a ele uma face nova, também diante daquele que o expôs.
A expressão do que existe de melhor, pior, maior e menor dentro de um ser é o que faz com que se chegue cada vez mais perto de enxergar e experimentar quem se é.
Conversas, composições, criações, registros, interpretações. Tudo é veículo para seguir o caminho que, saindo de dentro, leva para fora e, paradoxalmente, traz de volta para si.
Cantar uma canção ou criar um blog. Montar um painel de fotografias ou entrar para uma banda. Publicar um livro ou ligar para um amigo. São tantas e tão variadas as formas buscadas e encontradas pelas pessoas para serem vistas, ouvidas, percebidas, sentidas. A internet, crucificada e adorada, já constitui sozinha um veículo inestimável de conectar expressões que, de outra forma, talvez jamais se alcançassem.
Ser humano, é função que gira, a todo tempo, em torno de comunicar encantos e desencantos dos recantos interiores.
Comunicar é impreciso como viver. E tão necessário quanto.
Respiração através da qual entra e sai o alimento para sustentar existências que com este, talvez nunca precisem de outro significado. Sozinho, este ainda teria sido um significado invejável que um sem número de pseudo-comunicólogos, profissionais ou amadores, não sonha em atingir.
Na lapidação da expressão como prática, afloram a ânsia, a curiosidade e o gosto pelo saber. Se a expressão ganha espaço, aumenta também a procura por novas descobertas e cria-se um círculo virtuoso de ganhos inestimáveis para a essência que busca existir verdadeiramente.
Comunica-se para se sentir vivo, inteiro, necessário, produtivo, realizado, integrado, visível. A comunicação de um para consigo, de um para outro e de um para todos, valida a sua passagem por este mundo, alicerça o vôo de buscar mais e além.
A satisfação em trazer à luz um momento qualquer que vinha existindo apenas na privacidade inalcançável de uma alma, impulsiona intenções e arrebata o indivíduo para um nível de existir no qual ele enxerga a sonhada perspectiva de encontrar-se, afinal. De ser, de assenhorar-se do seu território, de farejar o motivo pelo qual está aqui.

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segunda-feira, novembro 05, 2007

Aceno do lado de fora



Essa alma fica aqui dentro
querendo se desmanchar em pétalas
aqui fora.

Há mudas que brotam

ou secam falando demais

Vidas me tocam
mas a indiferença me persegue.
Mão dada com meu Deus
Olhos nos olhos dos meus demônios

Ouvir. Respirar. Desapegar.
Mais ramos verdejando a janela de folhas abertas.


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Refugee



Um refúgio
da loucura do mundo

Na minha loucura
me refugio.

A loucura que é minha
consiste em viver num faz-de-conta
Onde nada se pôde ganhar ou perder.
Tudo sempre esteve no seu lugar.

E vão-se as sementes evoluindo de si mesmas
Vai o vento navegando em suas próprias curvas
Vão os mortais reconhecendo suas faces e circuitos.
Nada além do que já estava desenhado nas nuvens.

Nas escolhas desvendam-se os contornos, inabaláveis.
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