sábado, novembro 24, 2007

Para antes de morrer

Em "Antes que você morra", entre muitas outras viagens, Osho nos leva nesta:

A primeira vez em que se ouviu falar do Mestre Shibli foi quando Mansur Al Hillaj estava sendo assassinado. Shibli era companheiro e amigo de Al Hillaj. Muita gente foi assassinada em tempos passados pelos pretensos religiosos. Jesus foi morto...mas nunca houve um assassinato como o de Al Hillaj; esse foi o mais terrível de todos. Jesus foi simplesmente crucificado, mas Al Hillaj não foi simplesmente crucificado. Ele foi crucificado, mas primeiro lhe cortaram as pernas - e ele estava vivo - e depois as mãos; foi verdadeiramente torturado. Em seguida, sua língua também foi decepada e seus olhos arrancados - e ele ainda estava vivo. E depois cortaram o seu pescoço e o fizeram em pedaços. A primeira vez que se ouviu falar de Shibli foi nesse momento. Cem mil pessoas estavam reunidas para jogar pedras e ridicularizar Mansur. E que crime teria ele cometido? Que pecado havia cometido? Ele não havia cometido qualquer pecado, qualquer crime. Seu único crime foi o de ter dito "Anal Hak", que significa "Eu sou a verdade, eu sou Deus". Se ele estivesse na Índia, o povo o teria adorado durante séculos. Todos os videntes dos Upanixades declaram isto: "Aham Brahmasmi" - "Eu sou Brahma, o Eu Supremo". Anal Hak não é outra coisa senão uma tradução de Aham Brahmasmi. Mas os muçulmanos não podiam tolerar tal coisa.
(...) Mansur é um dos maiores Sufis. Nenhum outro homem na tradição Sufi é comparável e ele. E ele foi assassinado. O povo estava atirando pedras nele, e Shibli estava no meio da multidão. Mansur estava rindo e achando graça. Quando deceparam seus pés, ele apanhou o sangue nas mãos e as lavou com ele, assim como os muçulmanos fazem com a água - wazu. E alguém da multidão perguntou: "O que você está fazendo, Mansur?".
Mansur respondeu: "Como é que se pode fazer wazu com água? Como se pode lavar-se com água? - porque o crime você cometeu com seu sangue, o pecado você comente com sangue, então como se pode purificar com água? Só o sangue pode ser a purificação. Estou purificando minhas mãos, estou me aprontando para a oração."
Alguém riu e disse: "Você é um tolo! Está se aprontando para a oração? Ou está se aprontando para ser assassinado? "
Mansur riu e respondeu: "A verdadeira oração é isto - morrer. Vocês estão me ajudando na minha oração final, a última. E este corpo não pode fazer nada melhor, não pode ser usado de forma melhor - vocês estão me sacrificando no altar do Divino. Esta será minha última oração no mundo."
Quando começaram a decepar suas mãos, ele disse: "Esperem um instante! Deixem-me orar, porque quando eu não tiver mais as mãos, será mais difícil." Então olhou para o céu, orou a Deus e disse: "Perdoe estas pessoas, porque não sabem o que fazem". E falou a Deus: "Você não pode me enganar, seu grande enganador! Eu posso vê-lo em cada pessoa presente aqui. Está tentando me enganar? Você veio como o assassino? Como o inimigo? Mas eu lhe digo, você não pode me enganar, eu o reconhecerei sob qualquer forma que apareça - porque o reconheci dentro de mim mesmo. Agora não ha´possibilidade de engano."
As pessoas atiravam pedras e lama, e Shibli estava ali. Mansur estava rindo e sorrindo, e de súbito começou a gritar e chorar, porque Shibli havia jogado uma rosa em Mansur. Pedras - ele ria. Uma rosa - começou a chorar e a gritar. Alguém perguntou: "O que aconteceu? Com pedras você ri - ficou louco? Shibli atirou apenas uma rosa. Por que você está chorando e gritando tanto?"
Mansur respondeu: "As pessoas que estão atirando pedras não sabem o que fazem, mas este Shibli tem que saber. Para ele será difícil obter o perdão de Deus."
Shibli era um grande sábio erudito, conhecia todas as escrituras. Era um homem de conhecimento. E Mansur disse: "Os outros serão perdoados, porque estão agindo na ignorância, não podem evitar. Não importa o que façam, esta´bem. Na sua cegueira, é tudo que podem fazer, não se pode esperar mais do que isso. Mas Shibli - um homem que sabe! Um homem de conhecimento... será difícil para ele obter perdão. Eis porque eu choro e grito por ele. Ele é o único aqui que está cometendo pecado. Ele sabe! É por isso".
Isto é algo a ser compreendido. Você não pode cometer pecado quando você é ignorante. Como pode cometer um pecado, quando é ignorante? A responsabilidade não está em você; mas quando você sabe, então a responsabilidade está presente. O conhecimento é a maior responsabilidade, o conhecimento o faz responsável. E esta afirmação de Mansur transformou Shibli completamente. Ele se tornou um homem totalmente diferente. Jogou fora o Alcorão, as escrituras e disse: "Elas não me puderam fazer entender nem isto: que todo conhecimento é inútil. Agora vou procurar o verdadeiro conhecimento". E mais tarde, quando lhe pediram que comentasse a afirmação de Mansur, perguntaram: "Qual era o problema? Por que você jogou a flor?" E Shibli respondeu: "Eu estava na multidão e fiquei com medo dela - se não jogasse algo as pessoas poderiam pensar que eu pertencia ao grupo de Mansur. Podiam pensar que também sou companheiro e amigo, podiam se tornar violentas comigo. Eu não podia jogar pedras porque sabia que Mansur era inocente, mas também não tive coragem suficiente para não jogar nada. Eis porque atirei a flor - apenas um comprometimento. E Mansur estava certo ao chorar: chorou pelo meu medo, pela minha covardia. Chorou porque todo o meu conhecimento e tudo o que acumulei a vida toda fora inútil - eu estava comprometido com a multidão".
Todos os eruditos são cúmplices da multidão, são comprometidos com a multidão, por isso é que você jamais ouviu falar de um erudito crucificado por ela. Eles são seguidores da multidão, sempre se comprometem, E a sua cumplicidade é esta: curvam-se quando comparecem diante de Buda ou de Mansur e também se curvam diante da multidão. São gente astuta, muito astuta.
Mas Shibli mudou completamente, ele compreendeu. O sentimento de Mansur por ele e os soluços de Mansur se tornaram uma transformação.
E mais tarde Shibli se tornou um Mestre por seu próprio direito. Levou pelo menos doze anos para isso, perambulando como um vagabundo, um pedinte. E as pessoas perguntavam: "Por que você anda por aí? De que se arrepende?" - porque continuamente ele batia no peito, chorava e soluçava. Quando entrava na mesquita, chorava tanto que todos da aldeia se reuniam. Era tão comovente, uma angústia tão grande, que o povo perguntava: "O que você está fazendo? Que pecado cometeu?".
E ele dizia: "Matei Mansur. Ninguém ali era responsável, mas eu poderia ter compreendido. E joguei uma flor nele, comprometi-me com a multidão, fui covarde. Eu poderia tê-lo salvo, mas perdi o momento. Eis por que me arrependo."
Ele se arrependeu a vida inteira. O arrependimento pode ser tornar um fenômeno muito profundo, se você compreende a responsabilidade. Então, mesmo uma coisa pequena, caso se torne um arrependimento...não apenas verbal, não apenas na superfície; se atinge fundo suas raízes, se você se arrepende desde as suas raízes, se todo o seu ser se sacode, treme, chora e as lágrimas brotam; não apenas de seus olhos, mas de cada célula de seu corpo, então o arrependimento se torna uma transfiguração. Este é o significado do que Jesus repetidas vezes diz: "Arrependam-se!".
O mestre de Jesus, João Batista, não tem muito mais a dizer. Toda a sua mensagem se resume em: "Arrependam-se!" - porque o Reino de Deus está próximo. Ele já vai chegar - arrependam-se antes disso!". O arrependimento - não só mental, mas total - limpa e purifica. Nada pode purificá-lo tanto, ele é uma fogueira, queima todo lixo que existe em você.
Os soluços de Mansur perseguiram Shibli continuamente durante toda a sua vida. Acordando ou dormindo, as lágrimas de Mansur o perseguiam. E isso se tornou uma transformação. Isso é o que um Mestre, somente um grande Mestre, pode fazer - e Mansur o fez. Mesmo quando estava morrendo, transformou um homem como Shibli. Mesmo morrendo, usou sua morte para transformar este homem. Um mestre continua, vivendo ou morrendo, ou mesmo depois de morto, continua usando todas as oportunidades para transformar as pessoas.

***

Agora vejo em parte, mas então veremos face a face - O indiano Osho, tornou-se professor de filosofia e trilhou o caminho da descoberta da eternidade - fora das "memórias do passado e da antecipação do futuro" desde muito cedo. Aprendeu e desenvolveu técnicas de meditação e saiu pelo mundo em busca de difundir e aprimorar conhecimentos, e encontrar pessoas. Tido como louco em seu tempo e como lenda após o final de sua vida, Osho não acreditava na mortalidade. "Nunca nasceu, nunca morreu. Apenas visitou este planeta Terra", dizia sua cripta.

Como a Bíblia e outros livros-guias de grandes Mestres, os escritos de Osho são (para mim) metáforas de interpretações inúmeras. Jamais acreditei na leitura literal que muito se insiste em fazer deles e no conceito de culpa e arrependimento que a igreja católica, entre outras, se empenha tanto em divulgar. Da forma como foi contado aqui, me soa muito mais como uma tomada de consciência verdadeira, um caminho para a descoberta de algo maior dentro de nós mesmos.
Tudo o que vale a pena ler está nas entrelinhas.

Namastê.


***

2 comentários:

Lu Dias disse...

"A ignorância é vizinha da maldade"

Olha, esse texto faz pensar muita coisa...
Sei que tudo na vida existe por um propósito, por muitas coisas eu sinto raiva e por outras eu tento me acalmar, mas eu só queria uma coisa: que não existisse violência. Que tudo fosse respeitado e dialogado, que não houvesse disputa por poder, enfim, maldade propriamente dita.
Por outro lado, me admiro por pessoas que lutam pela sua verdade, que mesmo na morte servem de exemplo de ética e amor.

Vigiai e orai.

Bjs!

Anônimo disse...

Controverso e muito interessante... Como dissemos, depende também e muito de como quem está lendo entende.

É ótimo ter vários pontos de vista sobre algo, mesmo que não se concorde em tudo. E saber extrair da melhor forma o que nos auxilia no aprendizado. Separar o "joio" do "trigo"... O nosso próprio "joio" e nosso "trigo" no caso, segundo a vivência e opinião de cada um.

Obrigado por nos presentear com o texto. :-)

Beijo, flor mais linda.