segunda-feira, setembro 03, 2007

Crônica Para Mim

Eu nasci contrariando as expectativas de alguns. Teria sido mais fácil, para estes, eu ter esperado para encarnar em outras condições.
Acontece que, quando nasce alguém, esta vida chega fresca, nova, toda por ser percorrida e descoberta. E aí, quem está por perto acaba renascendo junto. Quem fica longe não tem como saber do que é que esta vida é feita. Quais são as suas cores, sabores e dores. Quais são seus sonhos e desejos. O que lhe vai na alma e no coração. Quem fica longe não tem como perceber tudo o que a vida nova não diz e jamais irá dizer. Este é um privilégio dos que renasceram e cresceram junto.
Ocorre que uma pessoa é constituída de infinitas nuances que nem ela própria conhece e tudo sempre pode mudar. Os sábios - ainda que ignorantes de sua sabedoria - deixam livre o espaço para o intangível. Sabem que mais dia, menos dia, um anjo pode soprar por sobre seus ombros e trazer o imprevisível. Nesta hora tudo se move e cada um que cuide de limpar a sua bagunça. Porque é claro que a mudança bagunça tudo. O imprevisível remove portas e janelas a tapa, e deixa muito rastro para limpar.
Entre uma ventania e outra, eis que me surge na vida, um pai que eu nunca conheci. Ou melhor, um pai que nunca me conheceu.
Da forma que os eventos do meu nascimento se deram, eu jamais procurei esta pessoa para que assumisse o seu papel na minha vida, ainda que tivesse plenas condições para isso, da mesma forma que ele, para me encontrar. Não acredito em amor que se pede. Que dizer então, de ter que pedir que o co-autor da sua vida te ame. Para mim, não caberia jamais.
Existem, é claro, os detalhes técnicos da concepção, como por exemplo, quem vai pagar as contas. Neste quesito, felizmente a necessidade nunca chegou a obrigar que ele precisasse ser procurado com exigências de que pagasse o que lhe cabia. Para mim, esta possível renda a mais nunca entrou na conta do porque seria importante ter pai. Outro sobrenome na minha documentação também nunca fez a menor falta. Eu adoro o meu. Convênios diversos para maior conforto e segurança? Se precisei, foi tão ínfimo que sequer me lembro.
O que esta vida fresca poderia ter feito bom uso quando chegou, seria uma dose extra de família. Gente para nos amar e proteger, não é demais jamais. Gente para nos cuidar e nos dar a segurança, não do dinheiro e das documentações, mas sim de que se pode sair para o mundo com todo desprendimento e coragem porque se o mundo não nos merecer, o amor do ninho de onde saímos estará sempre ali para curar as feridas. Isto, felizmente, eu tive intensamente. Mas toda vida é gerada de uma mulher e de um homem.
Estabeleceu-se que seria desta forma por alguma razão e cada qual, homem e mulher, tem suas próprias particularidades insubstituíveis a exercer quando gera um outro ser. Um não poderá cumprir o papel do outro, simplesmente porque são diferentes e têm seu próprio papel a cumprir. E a vida que chega precisa de ambos para voar com confiança - para dentro de si mesma e para os confins da terra.
Com todos os pensamentos que me ocorreram desde que este pai surgiu, permanece sem resposta uma pergunta bastante importante: há prazo de validade para pai? É possível entrar, como pai, na vida de uma pessoa quase três décadas depois do seu nascimento? Qual outro tipo de relacionamento seria possível como alternativa?
Às vezes, estas perguntas me parecem essenciais. Noutras, me parecem o mais insignificante de tudo.
Neste ponto foi que me chegou a noção de que tudo sempre pode mudar. O coração humano tem limites incrivelmente elásticos para receber a mudança, o intangível.
É bem menos importante saber se a validade já expirou, do que saber quais foram as reais motivações e intenções para que este pai que jamais foi obrigado a nada, decidisse, tanto tempo depois, se apresentar.
Uma pessoa que teve pai, ainda que não tenha sido pai de um de seus filhos, talvez jamais chegue a enxergar a extensão da importância deste amor. E a extensão dos danos da falta dele.
É um terreno tão frágil, que se deveria ter licença judicial para pisar. A falta de cuidado ao fazê-lo, deveria ser crime inafiançável previsto na lei.
Nesta hora, palavras como "obrigação" e "responsabilidade", ficam pequenas e vazias diante do amor que se abriu mão de construir.


5 comentários:

Lu Dias disse...

Querida Bi...
Palavras...
Eu não as tenho pra deixar aqui, ao não ser meu emocionado abraço!

Anônimo disse...

Ao invés de chamar de "imprevisível", eu prefiro chamar de "o maior presente".Prefiro chamar de Bianca.

Anônimo disse...

Como disse, essa postagem me toca profundamente em cada palavra e sentimento. Em todos os contextos, o seu, o meu e daqueles que lhe são queridos e estão presentes de verdade, tão espontaneamente e por tanto amor, na sua vida.

É uma honra fazer parte da sua vida.

Faço das palavras da Lucia, as minhas. O maior presente: Bianca. A vida também se move de formas misteriosas.

Beijos emocionados, flor mais amada.

Anônimo disse...

Bia, admiro seu jeito de ver a vida e principalmente o jeito de externar através dessas palavras que você nos confia através desse blog. Diante de um tema que poderia ser muito delicado para muitos, e talvez o seja para você também, uma crônica como esta nos mostra quanta sinceridade há no seu questionamento, quanta honestidade consigo mesma e também quanta sensibilidade e serenidade para tentar identificar nos mínimos detalhes, os quais podem ser tão importantes quanto os detalhes mais visíveis, as respostas para tal questionamento.
E o melhor de tudo é notar que o ângulo do qual você procura enxergar esse "problema", não é o da mágoa, nem da indiferença, mas de quanto amor pode ter perdido ou de quanto ainda pode ser recebido. Isso para mim demonstra mais uma vez maturidade e sabedoria de sua parte. Realmente amor não é coisa que se possa cobrar de uma pessoa, já que deve brotar de uma vontade espontânea, do que há de mais profundo nela. Mas como, nesse caso, parece-me, veio assim, gratuito, e se não há mesmo mágoa, talvez não custe abrir-se para recebê-lo.
Bem, só queria deixar registrado mais uma vez a admiração que sinto pela sua escrita, que demonstra ser fruto de uma busca sincera da verdade e de uma maturidade que se aproxima, por assim dizer, da sabedoria.
Um grande abraço, lindona!

Sanka disse...

não sei o que dizer. quem sabe não haja.
admiro ainda mais você.
beijos!!!
muitos!