sexta-feira, junho 29, 2007

Eclipse

Um dia o tolo encontrou o sábio e conversaram.
Disse o sábio:
- Pense muito. Questione muito. Espere muito de si mesmo.
Convide-se a pensar, a ir além, a não se contentar em ouvir as definições que lhe chegam mastigadas e digeridas. A valer-se de toda e qualquer oportunidade de estender os seus limites.
E continuou:
- Para uma mente acomodada, um conceito é apenas mais uma forma de se fechar em si mesma.
Para uma mente livre, um conceito é mais um convite a ultrapassar incessantemente, rumo ao novo.
Tudo o que nos diz a "sociedade" (quem é esta afinal, senão nós mesmos???), a família, os meios de comunicação, a religião, a literatura, a história, a ciência e qualquer outra corrente estruturada para seguir em sua própria direção, é um abrir de portas rumo ao caminho da interrogação. Mais uma oportunidade de perguntar "será?". Um presente desvendado a cada afirmação. Um efervescer de idéias que borbulham incontidas, suplicando para serem consideradas. Um urro que sacode impetuosamente mas permanece manso no seu trotar consciente.
E o sabio encerra, em seu imperioso soar:
- Acorde. Não deixe os conceitos alheios te desenharem. Acorde. Não permita que afirmações paridas de outros ventres lhe digam quem você é, ou até onde chegará com a pessoa que pode ser. Acorde! Não deixe que a moldura já delimitada de outras crenças e estudos determine a sua visão dos passos que a humanidade dará pelo mundo , ou que o mundo dará sobre si mesmo.
E o tolo, atento e confuso, apenas ouviu.


sábado, junho 23, 2007

Seja Água


Eu aprendo a conta-gotas.
Vem a gotinha lá de cima, devagar, tranquilinha. Vem chegando, se esquivando dos obstáculos, contornando uns trechinhos mais rochosos e, de repente...splash! Faz a gotinha em mim.
Aí vou eu, pequena criança boba, absorvendo uma e outra gotinha que chegam no seu ritmo, molham no seu ritmo, acordam no seu ritmo.
As gotinhas vêm tilintando e, a aprendiz relativamente lenta que sou, vai seguindo o som da água. Splash! aqui, splash! acolá. Os pequenos ouvidos atentos procurando um sinal de umidade, de humildade, de humanidade.
Disse Bruce Lee: "Seja água, meu amigo". Se a água entra numa jarra, ela se torna a jarra. Se a água entra numa xícara de chá, ela se torna a xícara de chá. A água que desce a corredeira, ligeiríssima, se topa com uma rocha não se espatifa jamais. A contorna elegantemente, esguia e inteligente e continua a correr.
Se a água mora num conta-gotas, ela já carrega o conhecimento para saber o valor de cada gota. Que a gota que pinga é o oásis que pode saciar aventureiros e seus camelos, tropas, turistas e nativos.
E eu procuro pela próxima gota. Afino ouvidos, faro, visão.
Pessoas banhadas me cruzam o caminho e eu imagino se a água delas seria diferente da minha. Se elas seriam diferentes de mim que vivo pelas gotas que possam cair.
Splash! em algum canto. Meu ritmo se acelera porque posso estar perdendo algo de muito importante da água que caiu. E no meio da corrida penso que a minha gotinha certeira pode estar me procurando num canto outro qualquer.
Splash! faz a gotinha em mim.

quarta-feira, junho 20, 2007

Em off


Esta vida é um circo.

Coisa mais cômica viver acreditando e dizendo - indiretamente - pra si mesmo que certas coisas são determinantes.

Acordar preocupado com o grupo que vai visitar a empresa, como se a satisfação da sua alma dependesse disso ou como se fosse fazer a mais remota diferença para alguém os minutos de sono que perdeu.

Se dar ao trabalho de sequer levantar a sobrancelha por conta de um comentário meio atravessado que não-sei-quem (próximo ou nem tanto) fez da sua pessoa.

Perder cinco minutos inteiros do seu preciosíssimo tempo pensando a respeito daquela observação nitidamente (talvez não, mas que importa?) maldosa que fizeram bem no meio da sua tarde.

Gastar dois gramas de massa cinzenta para elaborar um e-mail resposta a alguém que deveria dar a vida por você, mas ao invés disto preferiu te procurar pela internet com 28 anos de atraso.

Se entristecer por alguns momentos porque o seu círculo de amizades (daquelas, de verdade verdadeira) já foi bem mais presente na sua vida, como se alguém tivesse vindo a este mundo para atender à expectativa de como você acha que as coisas deveriam funcionar.

Ter vontade de dar um xingo, daqueles de quando você topa o dedinho do pé na quina, porque tem este ou aquele programa que você quereria fazer, mas já viu que não vai ter como. E desde quando xingar resolveu alguma coisa??

Tem horas que o melhor seria abandonar o personagem de diva frustrada, abstrair do fato de que o universo se esqueceu de comparecer, sair correndo da roubada de se levar a sério demais, se recolher do picadeiro e cuidar do que é crucial de verdade.

Hoje tem marmelada sim, senhor!

domingo, junho 17, 2007

Clara


Cresce a vontade indócil pelo despir.
Despir-se de si. Encontrar uma outra forma de existir, quem sabe.

Abrir os olhos num cenário virgem a cada amanhecer.

Ser um espelho sem reflexo.
Não sendo, ser.

Renascer.



domingo, junho 10, 2007

Par


Nascemos todos ímpares. Morreremos ímpares.
Vivemos sempre ímpares, tendo em vista nossas buscas, ânsias, medos, dores, sonhos, segredos. Partimos solo de um ponto intransferível e cruzaremos a linha de chegada da mesma forma da partida.
É belo ser ímpar. Doce-amarga sensação de círculo, sem começo nem fim e completo em si mesmo. Como a aliança é um círculo e de completude se fazem os aliados. Aliado a si, de mãos dadas com o eu mais profundo. Solto, na própria vontade. Descobrindo-se, para poder então, se encontrar. Produzindo pensamentos libertadores e luminosos. Superando tempestades, reerguendo paredes depois dos terremotos, emergindo de águas profundas. Cantando a canção que vier à alma. Fazendo festas e celebrando superações.
Ímpar redenção.
Para o laço, porém, é preciso dois. Para o brinde é preciso dois. Para o abraço que envolve é preciso dois. Para a dança é preciso dois. Para o beijo que desperta é preciso dois. Para empurrar o balanço é preciso dois. Para a conversa é preciso dois. Para levantar os olhos do umbigo e fitar outras meninas é preciso dois. Para o colo é preciso, sempre, dois. Para a prática do amor, da entrega, da identificação, do inimaginável é preciso dois. Para não deixar a lágrima cair, dois. Para provocar o riso, dois. Para o questionamento, a perplexidade, o encantamento, o desatino, a renovação: dois.
Dois para enxergar o mundo indo e vindo.
Dois para amparar a queda.
Dois, para a juventude eterna.

terça-feira, junho 05, 2007

Quando eu era criança


Tenho algumas lembranças deliciosamente boas e puras e lindas.
Uma das minhas lembranças mais queridas de criança é uma cena que jamais me saiu da cabeça. Eu, pronta para dormir e já deitada na cama, olhando o céu escuro - a janela sempre ficava aberta, até certa hora - e ouvindo a minha mãe me embalar com o seu canto. Sentada bem próxima de mim, acariciando suavemente meus cabelos e rosto, ia me contando histórias com melodia.
E lá ficava eu, perdida nos versos, na brisa da noite e na voz da minha mãe que é, até hoje, um calmante natural para mim.
Deviam haver várias músicas no repertório, mas por alguma razão, a que mais ficou na memória e no coração foi Madalena, do Ivan Lins. Era a que eu me lembro de sempre pedir que ela cantasse.
Até hoje esta lembrança causa risos em nós duas. Minha mãe, que mal se recorda desta cena, custa a entender porque cargas d'água escolheria justo esta música para embalar uma criança com tantas cantigas de ninar possíveis. Isto eu também não sei.
Mas hoje, acho que não poderia haver música melhor.

(...) Fique certa, quando o nosso amor desperta
logo o sol se desespera
e se esconde lá na serra

Madalena, o que é meu não se divide
nem tampouco se admite
quem do nosso amor duvide.

Até a lua, se arrisca num palpite
que o nosso amor existe
forte ou fraco, alegre ou triste


Não é uma beleza?

domingo, junho 03, 2007

Dia de Enamorar-se


Não é fácil enamorar-se.

Estar enamorado é coisa de gente que gosta de se debruçar de manhãzinha no parapeito, escancarar as janelas, fechar preguiçosamente os olhos e sorrir.

Sem motivo.

Só sorrir, porque o calor do sol da manhã causa no peito o bem sentir.

Lullaby to myself

E não somos todos partículas de energia cósmica?
Fragmentos de vida infindável que escorre das mãos do tempo indo e vindo de horizontes mutantes?
Olhos entregues luzindo amanhãs que desde hoje vivem?
Amor - incondicional como é todo amor - esperando ansiosos por uma oportunidade de nos doar e preencher?
Não somos todos a luz que esperamos enxergar em meio ao caos?

Deuses caídos e ascensionados no ritmo frenético da vida a qual chamamos realidade?

Somos nós.
A própria divindade que é, de tudo, capaz.
Que pode. Que alcança.
Aliança de nobre metal, real, dourada de sol e poder.


Eternidade.