quarta-feira, janeiro 24, 2007

Mulher Selvagem

Tem alguns temas que ficam especialmente interessantes conforme a ótica pela qual são vistos. Este texto conheço há algum tempo, amo desde o primeiro momento e seria outro texto caso houvesse sido escrito por uma mulher. Não importa quão brilhante escritora fosse. O fascínio, está em - além do conteúdo libertário, místico, físico, transcendente, inteligente - haver sido escrito por um homem. E que homem. Para ler, reler e rever-se - caso seja mulher - ou revê-la - caso seja homem.
Mulher Selvagem - Ricardo Kelmer

A mulher selvagem em quase tudo é uma mulher comum: pega metrô lotado,
aproveita as promoções, bota o lixo para fora e tem dia que desiste de sair
porque se acha um trapo. Porém em tudo que faz exala um frescor de
liberdade. E também dá arrepios: você tem a impressão de que viu uma loba na
espreita. Você se assusta, olha de novo... e quem está ali é a mulher doce e
simpática, ajeitando dengosa o cabelo, quase uma menininha. Mas por um
segundo você viu a loba, viu sim. É ela, a mulher selvagem.
A sociedade tenta mas não pode domesticá-la, ela se esquiva das regras.
Quando você pensa que capturou, escapole feito água entre os dedos. Quando
pensa que finalmente a conhece, ela surpreende outra vez. Tem a alma livre e
só se submete quando quer. Por isso escolhe seus parceiros entre os que
cultuam a liberdade. E como os reconhece? Como toda loba, pelo cheiro, por
isso é bom não abusar de perfumes. Seu movimento tem graça, o olhar destila
uma sensualidade natural - mas, cuidado, não vá passando a mão. Ela é um
bicho, não esqueça. Gosta de afago, mas também arranha.
Repare que há sempre uma mecha teimosa de cabelo: é o espírito selvagem que
sopra em sua alma a refrescante sensação de estar unida a Terra. É daí que
vem sua beleza e força. E sua sabedoria instintiva. Sim, ela é sábia pois
está em harmonia com os ritmos da Natureza. Por isso conhece a si mesma,
sabe dos seus ciclos de crescimento e não sabota a própria felicidade. Como
todo bicho ela respeita seu corpo mas nem sempre resiste às guloseimas.
Riponga do mato, Gabriela brejeira? Não necessariamente, a maioria vive na
cidade. E há dias paquera aquele pretinho básico da vitrine. E adora dançar
em noite de lua. Ah, então é uma bruxa... Talvez, ela não liga para rótulos.
Sabe que a imensidão do ser não cabe nas definições.
Mulheres gostam de fazer mistério. Ela não, ela é o mistério. Por uma razão
simples: a mulher selvagem sabe que a vida é uma coisa assombrosa e perfeita
e vive o mais sagrado dos rituais. Ela sente as estações e se movimenta de
acordo com os ventos, rindo da chuva e chorando com os rios que morrem.
Coleciona pedrinhas, fala com plantas e de uma hora para outra quer ficar
só, não insista.
Não, ela não é uma esotérica deslumbrada mas vive se deslumbrando: com as
heroínas dos filmes, aquela livraria nova, o CD do fulano... Ela se
apaixona, sonha acordada e tem insônia por amor. As injustiças do mundo a
angustiam mas ela respira fundo e renova sua fé na humanidade. Luta todos os
dias por seus sonhos, adormece em meio a perguntas sem respostas e desperta
com o sussurro das manhãs em seu ouvido, mais um dia perfeito para celebrar
o imenso mistério de estar vivo.
Ela equilibra em si cultura e natureza, movendo-se bela e poética entre os
dois extremos da humana condição. Ela é rara, sim, mas não é uma aberração,
um desvio evolutivo. Pelo contrário: ela é a mais arquetípica e genuína
expressão da feminilidade, a eterna celebração do sagrado feminino. Ela está
aí nas ruas, todos os dias. A mulher selvagem ainda sobrevive em todas as
mulheres mas a maioria tem medo e a mantém enjaulada. Ela é o que todas as
mulheres são, sempre foram, mas a grande maioria esqueceu.
Felizmente algumas lembraram. Foram incompreendidas, sim, mas lamberam suas
feridas e encontraram o caminho de volta à sua própria natureza. Esta
crônica é uma homenagem a ela, a mulher selvagem, o tipo que fascina os
homens que não têm medo do feminino. Eles ficam um pouco nervosos, é
verdade, quando de repente se vêem frente a frente com um espécime desses.
Por isso é que às vezes sobem correndo na primeira árvore. Mas é normal.
Depois eles descem, se aproximam desconfiados, trocam os cheiros e aí...
Bem, aí a Natureza sabe o que faz.

6 comentários:

Anônimo disse...

Amei!!! Textos assim me enchem de orgulho!!
Comemoro com uma música, ok?
Beijos!!



Tigresa
Caetano Veloso

Uma tigresa de unhas negras
e íris cor de mel
Uma mulher, uma beleza
que me aconteceu
Esfregando sua pele de ouro marrom
do seu corpo contra o meu
Me falou que o mal é bom
e o bem cruel
Enquanto os pelos dessa deusa
tremem ao vento ateu
Ela me conta, sem certeza,
tudo que viveu
Que gostava de política
em mil novecentos e setenta e seis
E hoje dança no Frenetic Dancing Days
Ela me conta que era atriz
e trabalhou no "Hair"
Com alguns homens foi feliz,
com outros foi mulher
Que tem muito ódio no coração,
que tem dado muito amor
E espalhado muito prazer e muita dor
Mas ela ao mesmo tempo diz
que tudo vai mudar
Porque ela vai ser o que quis,
inventando um lugar
Onde a gente e a natureza feliz
vivam sempre em comunhão
E a tigresa possa mais
do que um leão
As garras da felina
me marcaram o coração
Mas as besteiras de menina
que ela disse não
E eu corri para o violão, num lamento,
e a manhã nasceu azul
Como é bom poder tocar um instrumento.

Anônimo disse...

Oi, linda...

Adorei o texto! (Uau, e que imagem também...)

Mas... Se há mesmo uma coisa que não faço é fugir, muito menos subindo na árvore... Muito pelo contrário. rsrs

Uma mulher "selvagem" como descrita no texto, é uma mulher de verdade. Sem medo de ser mulher, com toda a grandiosidade, o poder e o encanto envolvidos nisto.

E, como o próprio Ricardo diz tão bem, mulheres de verdade fascinam, atraem... Homens de verdade e também fascinantes. Que não têm medo delas e nem de serem homens mesmo... E não "machos", simplesmente.

A verdade fascina. O feminino encanta.

Mulher, "selvageria", feminilidade, grandiosidade, força, sensibilidade, verdade, magia... Você!

Beijo, beijos...

Anônimo disse...

Não conhecia o texto, mas como sempre, aqui encontramos "tudo de bom". a mulher não abre mão do seu poder "matriarcado", sem cerimônia, nestas situações tão límpidas, envolvente, ao mesmo tempo erótica,ainda que, no amor, na vida e na morte a história sempre recomeça...com carinho e sensualidade!!abraços.

Anônimo disse...

Conhecendo o teu espaço e lendo um belo texto.

Anônimo disse...

Concordo com vc! E que homem! rs...
Não é a primeira vez que leio este texto, nem é a primeira vez que ele me remete ao Mulheres que correm com lobos!
É por isso que me encanto tanto com a literatura! rs...
Bia, entrei pra ler o texto atual, mas não resisti.. fui descendo, lendo, descendo, lendo...
Gosto imensamente do seu jeito de escrever. É pura sensibilidade. Gostei especialmente do O oposto da troca. Ele já começa mexendo com a gente! rs...
Beijos querida. Prazer demais estar aqui.

Anônimo disse...

Escrevo isto para dizer que ainda não estou morto...mas se as minhas dificuldades com este computador e estes blogs continuarem a ser o que têm sido últimamente, é bem possível que tal aconteça em breve.Um abraço.
P.S. ESSA "MULHER SELVAGEM" FEZ COM QUE EU SENTISSE PENA DE NÃO SER MAIS NOVO, O QUE É UM CLARO INDICATIVO DE QUE ESTOU VELHO DEMAIS...kkkkk