domingo, janeiro 14, 2007

Pequenas Epifanias

Graças à minha queridíssima Nathali (a sensibilidade ímpar linkada aqui ao lado no Certas Coisas Entre Nós ) eu tive a felicidade de tomar conhecimento mais de perto deste inacreditável Caio Fernando de Abreu. Me apaixonei imediatamente. Perdidamente. Aí fui ver mais de perto e descobri o Pequenas Epifanias , uma coletânea de alguns de seus contos que traz de presente este aqui transcrito. Não tinha mesmo jeito melhor de falar deste gênio das palavras, do que trazendo um de seus momentos mais inspirados, apaixonados e apaixonantes. Tenha uma boa viagem.

Dois ou três almoços, uns silêncios.
Fragmentos disso que chamamos de "minha vida".

Caio Fernando Abreu

Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro. Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos. Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas. Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece. De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia. Era isso - aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria. Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

(Publicado no jornal "O Estado de S. Paulo", 22/04/1986 e no livro com o delicioso nome de 'Pequenas Epifanias')

3 comentários:

Anônimo disse...

Poético encontro... embora escrito em 86, muito atual. Talvez por isso que dizem que escritores vivem mais, leêm mais. Bjão!

Anônimo disse...

Tava conversando ainda a pouco com a Sanka quando ela me falou do seu blog. Pra ser sincera, nem lembro porque comentamos sobre ele, mas entendo porque não lembro; passei os olhos e vi que vou ter que voltar e me permitir ler demoradamente. Gostei de suas escolhas. Um abraço

Anônimo disse...

Belssímo texto! nao conhecia.ecelente ecolha.Caio viveu com intensidade.Tinha uma experiencia de vida dessasque pode derrotar uma pessoa mais fraca ou fragilizada.Falar de amor,dor,solidao,preconceito(era gay);de generossidade(sua a mae o acolheu de forma amorosa na sua doença).Amor...era dsso que falava e fala seus tetos.Nao um amor literario,idealizado,ra um amor de vvencia;dor,gritos,raiva,choro,perdao,ajuda,silenci,amparo,gratidao,consolo,perdoa,renuncia.So a alma que vivenciou dores tragicas sabe entender do que ele falou tao bem.Cuida sempre de humanizar,isto é ...tornar menos sagardo a dor,para sim entendermos e resoeita-la.Sofrer faz parte da realidade human.O grande sofrimento ,creio,é aquele feito por amor,amores,nao seleciono o amor aqui.Falo do amor que se quer bucar,se lançar corendo riscos ,o amor que desafia as ordens e pode sofrer puniçoes graves por isso.Me comove almas assim,me comove amores assim,simls,louos,corajoso,livres.isto assusta a maioria,inibe,desdequilibra o senso de ordem por vezes mesquinho,hipocrita.Tenho relido literatura romantica,e vejo como o amor é exaltado como forma últia da alma(Cristo viveu esta Paixao amorosa)de um modo mais abrangente.Ha os amores individuasis,que se buscam ou buscamos.´um amor romantico ,que pode dar a nossa alma o sentento de um amor maior.Tudo é um exercício para entendermos do amor como onte de satisfaçao.No caminho do amor sempre haverá dores.Sempre erguendo-se barreiras,barreiras para serem ...derrubadas.Abraço afetuoso.